HIACE. ANTROPOLOGIA DAS ESTRADAS
NA ILHA DE SANTIAGO (CABO VERDE)
NA ILHA DE SANTIAGO (CABO VERDE)
[REVISTA CABO-VERDIANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS,
2: 333-344, 2015]
2: 333-344, 2015]
Gerard Horta
Em primeiro lugar, vamos sintetizar os conteúdos duma investigação [1] relativa à planificação urbana e à movilidade no transporte colectivo
interurbano em Santiago a través dos hiace (Horta/Malet, 2014) e, em segundo
lugar, vou propor uma reflexão sobre as implicações da regulação formal,
administrativa, do “sistema hiace” por parte do Estado.
I
Durante os meses de outono dos anos 2009, 2010 e 2011 desenvolví,
juntamente com o antropólogo Daniel Malet, o trabalho de campo dum estudo sobre
os usos e as apropiacões das estradas por parte dos motoristas dos hiace (uma carrinha minivan de
transporte colectivo que toma o seu nome do modelo Hiace da empresa Toyota,
muito usado em África). Tratava-se de estudar as apropiações espaciais
desempenhadas pelos motoristas e também pelos peões, e a sua relação com a
planificação pública de determinados espaços urbanos da ilha de Santiago (Cabo
Verde) no contexto da mobilidade. O objecto inicial da investigação abrangia os
usos, as práticas e as representações vinculadas com o espaço e com a própria
viatura, as suas funcionalidades instrumentais e simbólicas, assim como as
regulações e as resistências que se produzem perante a planificação
institucional do uso desses mesmos espaços urbanos e dos consiguientes modelos
de transporte e mobilidade. [2]
Se a atenção centrou-se no tráfico dos hiace [3]
é pela sua absoluta relevância para o transporte colectivo interurbano na ilha,
que se deve a que os hiace articulam o movimento de pessoas e mercadorias de
todo tipo, ligando –sem estar sujeitos a horários nem a paragens fixas– os
principais núcleos habitados de Santiago. Neste ponto, consideramos a grande
relevância das estradas como fenómeno social e a fraca presença que têm nas
etnografias do século XX, por isso traçamos o passo da antropologia
peripatética à etnografia das estradas, a considerar que o objecto de
observação do etnógrafo e o seu objecto de reflexão como antropólogo é a viagem
en si mesma (Augé, 2007: 71). Agora bem, também nesse caso sitúa-se a
multiplicidade implícita de abordagens, visto que toda viagem inscreve-se
simultaneamente como um deslocamento no espaço, no tempo e, em função dos
contextos de partida e de chegada, na jerarquia social (Lévi-Strauss (1969
[1955]: 79).
Desta forma é como foi analizada a literatura antropológica referente às
estradas africanas desde a obra de Michel Leiris –pela missão Dakar-Djibuti
(Leiris, 2007 [1934]) de 1931
a 1933– até à actualidade. A seguir foi estudado, o
desenvolvimento histórico da motorização em África e do transporte e, das
estradas em Cabo Verde
e Santiago (com a testemunha de diversos informantes –passageiros e motoristas
dos hiace–), as mudanças produzidas a partir dos anos oitenta e a chegada dos
hiace, a aparição e o crepúsculo de Transcor (empresa pública de transporte
colectivo interurbano), as dimensões simbólicas dos hiace (nominação,
rotulação, o status do motorista na cultura caboverdiana, a cultura viária
dominante) e instrumentais (condições laborais de motoristas e ajudantes,
sistemas de propriedade do hiace, organização do trabalho, formalização
administrativa e prácticas reais, vínculos entre motoristas e patrões e entre
motoristas e passageiros, desenvolvimento do hiace e a sua relação com os
processos de urbanização em Praia, Somada, Tarrafal e Pedra Badejo e o papel da
cooperação internacional na planificação urbana). Foram entrevistados
motoristas, passageiros (também vítimas de desastres), funcionários (polícias,
políticos, membros da DGTR –Direcção-Geral dos Transportes Rodoviários–), membros das companhias de seguros, etc. A etnografia inclui umas 200 viagens em
hiace, e incide muito especialmente nas múltiplas causas (de todo tipo) da
acidentalidade viária em Santiago.
II
Em outono de 2012 escrevemos um voluminoso informe para o Ministerio de
Ciencia e Innovación español. O capítulo final intitulava-se “Recomendações”,
que é a parte da nossa investigação em que o Ministerio tem interesse: ofrecer
aos cabo-verdianos algumas propostas relativas à aquilo que se deve fazer para
evitar ao máximo as consequências da acidentalidade viária em Santiago. Tratava-se
de propor o tipo de conteúdos que permitissem articular a colonização de aquilo
informal, e a normalização por parte
dum Estado “em vías de desenvolvimento”.
Sucupira (Praia).
Se quisessemos propor a reformulação de determinados aspectos do universo
hiace não à sociedade popular mas sim aos governantes de Cabo Verde –umas
propostas em muitos casos nada variam das que exigiríamos aos nossos próprios
governantes europeus–, se chegássemos a acreditar que os antropólogos europeus
somos “alguém” para aconselhar “alguma coisa” ao povo cabo-verdiano,
começaríamos por nos remeter ao abandono estrutural por parte das instituições
públicas do cuidado e a protecção das vítimas de desastres. Costuma-se afirmar
que a superação do estado actual das coisas
neste terreno viria, tal vez, da mão da criação duma estratagema de
combate da sinistralidade e dos seus amargos frutos, a promover e a proteger
também as iniciativas populares de autoregulação do sector, como associacões ou sindicatos não formais
mas sim empíricamente efectivos na sua labor –um assunto concebido por vários
motoristas–. Tal planificação foi projectada sem atender à necessária
transformação do modelo de relações económicas e laborais imperantes em Cabo Verde, pensamos
que muito provávelmente veria-se condenada a falhar. ¿Quem melhor que a própria
sociedade cabo-verdiana conhece melhor que ninguém o tipo de processos que são
precisos para pôr fim a esta dramatização estructural do tráfico socioviário,
geradora dum corolário sistemáticamente funesto? Como em todas as partes do
mundo, o Estado deveria garantir a atenção física e psicológica das vítimas de
desastres, a conservação do lugar de trabalho ou a contrapartida duma pensão
digna no caso de incapacidade derivada do desastre. Tudo isto, até que se
resolvesse favorávelmente o estado de saúde das vítimas. No caso de que o
sustento familiar dependa duma vítima mortal, deveriam ser articulados os
mecanismos necessários para que o Estado tome conta do grupo familiar nos
ámbitos que afectam aos serviços básicos: educação, saúde –inclusive o apoio
psicológico–, a morada e a conservação das condições materiais fundamentais.
Poderíamos continuar a dizer que perante a presênça de pelo menos un 10% de
hiace clandestinos em circulação, assim como de um número apreciável de
veículos propriedade de cargos públicos eleitos, de funcionáios de todo tipo e
inclusive de simples trabalhadores públicos, deveria de se fazer um processo de
regulação riguroso. Seria desejável que se prohibisse a propriedade dos
veículos autorizados para o transporte profissional a cargos públicos eleitos,
funcionários e trabalhadores públicos pelo risco de corrupção que comporta
(tanto em Cabo Verde
como em qualquer outro lugar).
Da mesma forma, deveriam de ser postos fora de circulação os veículos em
deficiente estado mecánico e sem cobertura da companhia de seguros, apoiando os
motoristas-proprietários que não dispuseram de meios para poderem trocar de
carrinha. Paralelamente, poderiam-se multar aqueles que usam as viaturas de
forma irregular –a qual coisa faria sair da circulação muitos destes hiace–. No
entanto, insistimos: ¿que sentido teria aplicar estas propostas se não se
modifica o modelo de relações laborais vigente nos hiace? ¿Até que ponto a
simples petição da formalização duma actividade económica como esta iria
resolver o nivel da altíssima concorrência por conseguir passageiros num
contexto social liderado pelo empobrecimento da maior parte da sociedade e em
que o número de passageiros depende em parte das suas possibilidades e
necessidades económicas e de trabalho? ¿Quem pode deslocar-se em hiace se não
dispõe dum trabalho ao qual apresentar-se nem da capacidade financeira para
viajar? Em vez, ¿cómo iria afectar o vínculo social que mantém o fundamento do
universo hiace a partir da rede de correntes de relações socioterritoriais na
cual qual se inscreve?
Motoristas de yasi de Tarrafal em Sucupira (Praia).
A inestabilidade e a precariedade laboral é uma das causas mais notáveis
das práticas de risco dos motoristas do hiace. A introdução da obrigatoriedade
de contratar formalmente o motorista com uma série de garantias estabelecidas
(dias de descanso semanal, cobertura da segurança social e períodos de férias)
asseguraria certa estabilidade. O motorista assalariado não deveria viver com a
pressão continua de fazer render a viatura ao máximo, a custo de ser despedido
se não for assim. Não é possível guiar um hiace sete días sobre sete, sem
férias nem descansos: trata-se de um despropósito em todos os sentidos. Tal vez
a reducção do parque de hiace, consubstancial à regulação geralizada das
viaturas, asseguraria o rendimiento do pequeno negócio do hiace sem que os
motoristas tivessem que recorrer a práticas de risco.
Resultaria imperativo articular a autoorganização dos motoristas e os passageiros
como base da administração da sua própria existência além do Estado, dos
sindicatos e das associaciões corporativas. Os motoristas poderiam canalizar
deste modo a defesa dos seus direitos como trabalhadores assalariados, e
assegurar um âmbito laboral seguro, justo e dignamente remunerado. Os
proprietários poderiam exercer pressão sobre o Estado com a finalidade de
proporcionar os mecanismos necessários para a organização do sector e a
manutenção apropriada das estradas –pavimentação, sinalização, iluminação, etc.
–. Os passageiros, então, poderíam organizar as suas próprias necessidades
juntamente com os hiacistas, e fazer-se valer perante a Administração pública.
Porém, desta forma não se garante nem a qualidade das estradas construídas
nem as promessas de conservação que as empresas estrangeiras contratadas
deveriam adquirir. Além disso, o mantimento não se pode limitar à limpeza das
márgens das estradas, sem mais.
Outro extremo constatado tem orígem na falta de presença policial no
conjunto da ilha, devido a que quase toda ela concentra-se em Praia e redores,
possibilitando de este modo a impunidade em matéria de tráfico no resto de
povoações, sendo praticamente impossível cruzar-se com um veículo policial na
estrada –desta forma aflora novamente a
discussão referente à necessidade da presença policial ou não em termos de
controlo e fiscalização do tráfico–. É
realmente em Praia e redores –até à zona de Somada– onde se concentram a
maior parte de acidentes pela grande densidade de circulação, por isso a
ampliação da rede policial de tráfico para o interior da ilha poderia diminuir
–mediante uma correcta fiscalização sobre o terreno– as prácticas de risco fora
da capital –de entrada, pela sobrecarga de passagem ou de mercadorias, e pelo
consumo de alcohol e de substancias psicoactivas–. À vez, asseguraria o
controlo do cumprimento das condiciões de contratação do motorista, comprovação
da propriedade, inspecção dos requisitos técnicos do veículo, etc. Uma vez
mais, o debate sobre o modelo da cultura viária à qual acudir e a atribuição de
maior ou menor relevância às dimensões da sanção efectiva se diluem-se num meio
social precarizado como este: negamos-nos a aceitar que as transformações
culturais e normativas possam realizar-se –em órdem a uma efectividade
empírica– sem ser acompanhado dum projecto colectivizador baseado no
desenvolvimento do bem estar material e da centralidade política da igualdade e
justiça social.
O processo de modernização –asfaltado e sinalização– das estradas
principais que se produziu em
Cabo Verde desde o ano 2009 até agora tem sido veloz e
intenso. Neste terreno deveria de haver um diálogo com os vizinhos e os peões
que protagonizam um uso habitual das vias de comunicação para situar as suas
necessidades e as pautas culturais que guiam as suas conductas. É de aí que vem
a importância do acondicionamiento e a protecção das beiras das estradas, por
causa do intenso uso que habitualmente realizam os vizinhos e as crianças das
escolas e do risco que disso se desprende. ¿Como se pode ter a certeza, dada la
extensão dum asfaltado correcto o qual da lugar a maiores velocidades, que os
conductores não entrem nas povoações a alta velocidade? Para atingir mais
respeito para com os usos do espaço por parte dos viandantes no interior e no
exterior dos núcleos urbanos, seria necessário reformular os fundamentos de uma
nova cultura viária dirigida a atender o tipo de apropriações históricas que os
viandantes caboverdianos levam a cabo das rúas e das estradas. Tais motivos
levariam a assumir: un maior cumprimento da regulação de conducção; e também a
adquirir como principio básico da conducção viária a minimalização das
situações de risco. ¿Deve-se incrementar e racionalizar o uso de quebramolas
para obrigar ao veículo a manter baixas velocidades no interior das povoações?
Sem dúvida, mas, ¿não é verdade que a modificação dos hábitos de condução
dominantes responde a um determinado tipo de cultura viária ligada a
condicionantes laborais, culturais, políticos, de prestigio social, etc.? É preciso aumentar a sinalização na estrada, e –a falta de iluminação artificial nocturna– a sinalização cromática ou luminosa das quebramolas –não debemos esquecer-nos da ausência geralizada de semáforos–.
Sucupira (Praia).
Na actualidade não existe uma fiscalização rigurosa à volta de: 1) o número
de horas de trabalho dos motoristas e os períodos de descanso diário, semanal e
ferial; 2) os limites da sobrecarga do veículo, tanto de passageiros como de
mercadorias; 3) a prohibição de viajar com as janelas fechadas enquanto se ouve
música: nesta situação é impossível ouvir as sinais sonoras que proceden do
exterior da viatura –as secuelas potenciais que provoca a aparição do novo
modelo hiace, o “Costa Camelo”, são muito preocupantes, posto que ao estarem
equipados com ar condicionado numa ilha onde faz calor durante todo o ano, as
janelas estão permanentemente fechadas, portanto com dificuldade para poder
ouvir as sinalizações sonoras do exterior: as nefastas consequências desta
situação pelo que se refere ao risco para a seguridade viária são evidentes–;
4) a obrigação de manter o
equipamento do veículo com cintos de segurança para todos os viajeiros, e, em
consequência, a obrigação geralizada de que todo passageiro viaje con o cinto
apertado; e 5) a prohibição de
ingerir substancias estupefacientes: grogu,
padjinha ou otras, pelas impactantes
e devastadoras derivações sobre a conducção.
A falta de vontade política governamental, motivada em principio pela já
referida falta estrutural de meios materiais para implementa-la, impediram até agora uma regulação pública do transporte colectivo interurbano em hiace em todas as suas dimensões. [4] A pesar de não poder estabelecer com certeza a qué é que levaria isso em Cabo Verde, no relativo aos usos do espaço por parte dos viandantes pode-se assegurar que em muitos aspectos tal regulação seria redundar numa maior inferiorização dos peões perante as viaturas motorizadas, de modo
que encontrariamo-nos na disjuntiva que
se produz entre o processo urbanizador moderno e as apropriações tradicionais,
populares, de rúas e estradas. A regulação do hiace deveria redundar na melhoria das condições de trabalho e de transporte das pessoas afectadas, e numa previsível redução da sinistralidade viária nas áreas urbanas e interurbanas.
Ainda que, ¿que maior factor de redução da sinistralidade que proceder à
creação dum auténtico serviço público e de qualidade de transporte interurbano
com autocarros ou minibuses? Um serviço que ofrecesse respostas às necessidades
horárias da sociedade cabo-verdiana, com percursos directos e com percursos
indirectos que atendessem à multiplicidade de necessidades das pessoas dos
núcleos populacionais dispersos
e que precisa de meios de mobilidade consistentes. A todo o custo,
evidentemente, de deixar de parar-se tras as curvas, de deixar de dar marcha
atrás no meio da estrada, de deixar de mudar tres veces de motorista num mesmo
percurso, tal vez a custo de sepultar os hiace para sempre. Por trás da
privatização e da destruição do serviço de transporte interurbano sob o governo
do MpD na década dos noventa afloram os interesses económicos dum sector social
de proprietários privilegiados que se propaga da própria Administração até aos
cargos públicos, os quais incumben nos afastados enclaves da diáspora
cabo-verdiana na Europa e nos EUA: E aos que os governos posteriores do PAICV
não acharam solução.
Sucupira (Praia).
¿E agora que? Em base ao nosso trabalho de campo e à reflexão e a análise à
qual nos levou esta investigação, ¿devemos propugnar a continuidade de uma
actividade informal que tem lugar num marco de exploração e corrupção política
e funcionarial, e que gera uma sinistralidade soferta pela gente humilde de
Santiago? ¿Ou, ao contrário, defenderemos a imposição plena da formalidade
estatal em todos os ámbitos do universo hiace? A principal consequência disto
consistiria em anular uma capacidade de autoorganização popular que depende só
dela mesma na hora de focalizar para uns ou outros rumos o desenvolvimento
deste fenómeno social.
A deplorável complexidade desta simplificadora dicotomia reside em que,
paralelamente à imposição de modelos estatais formalizadores da vida social, em
África aparece sempre esa proximidade das políticas públicas ultraliberais,
desreguladoras, constituídas em constante ameaça de assédio perpetuo para a existência
duma socialidade informal popular que parte mais do vínculo social que da
mercantilização económica das relações. Serão os próprios feridos em desastres,
serão os companheiros de motoristas represaliados como Marcelino, serão os
ajudantes e os motoristas assalariados aqueles que algum dia levantarão a voz
colectivamente… ou não.
Justificar a intervenção do Estado com o objetivo de materializar
determinadas mudanças normativas e relacionais não deixa de ser inquietante,
sobretudo conhecendo o perfil que iriam tomar tais regulações e as corruptelas
inaugurais: a destruição, a miserabilização e a anomização geralizada de
África, o abatimento da solidariedade –que por vezes surge da exploração e da
miséria– sob a universalização económica, tecnológica e cultural do
capitalismo. Trata-se de uma discussão que articula as tensões entre –por um
lado–,as sanções jurídicas e os modelos preventivos estabelecidos para paliar
os aspectos mais desagradáveis da motorização consubstancial à intervenção
urbanizadora; frente a –por outro lado– um contexto cultural determinado e as
suas prácticas empíricas reais, marcadas sempre por campos de identificação
relacional entre individuos e grupos, e por processos de desigualdade e
diferenciação inerentes a uma estrutura social profundamente jerarquizada.
Perante isto, ¿que aspecto deve ser regulado e por quem? ¿Trate-se simplesmente
de aumentar os dispositivos de controlo e fiscalização policiais nas rúas e
estradas? ¿Da educação viária impartida aos motoristas e peões? ¿Do estado das
estradas? ¿Do uso de semáforos? Em conclusão, ¿por qué referir-nos a um
problema de regulação, controlo e educação quando estas esferas de actuação são
massivamente desatendidas –e até transgredidas– pelas mesmas autoridades que as
preconizam? Uma visão compreensiva do problema da sinistralidade não pode
deixar de lado as relações que se estabelecem entre leis, regulações e
formações viárias “universais” perante ao conjunto de posições e disposições
socioculturais e políticoeconómicas enfrentadas no seio duma sociedade, e
expressadas a través de prácticas e processos relacionais complexos,
multicausais e contraditórios.
Aquilo que denominamos “sistema hiace” (solidariedade –maior ou menor–
entre motoristas, autogestão colectiva de tempos e paragens, flexibilidade e
representação em todos os aspectos) erige-se, mediante os elementos de
socialização e cooperação que contém e que gera, como um transporte moldeado
pelas necessidades inmediatas daqueles que o ocupam para autoregula-la
–ou daqueles que acudem para ocupá-lo–. Nas antípodas da noção de
“segurança” occidental, o hiace encarna um serviço creativo e flexível… que da
marcha atrás no meio da estrada, que espera a alguem que desce da montanha, que
se para num riacho, que abre a porta para que alguém saia a vomitar, urinar ou
comprar bananas, que se esconde da polícia ou que se despenha tristemente.
Trata-se dum veículo que vive para o social. ¿Condução temerária? O hiace, como
planteia Ference (2011) para os matatu
keniatas, adapta-se in situ às exigências
do corpo social que ocupa a viatura, o motorista poucas veces é mais do que a
suma das pressões e decisões do seu entorno e da paisagem –a mudar em cada
paragem–. Isso é o que encontramos nos nossos amados hiace.
Sucupira (Praia).
Tal vez ese “afecto” que deveria ser exigido à antropologia (entre outras
presenças occidentalizadoras em África) consista no complexo exercício de
descobrir y reforçar, no interior das relações de desigualdade, as estructuras
cooperativas e participadas que se
encontram já lalém, desde sempre, antes de que o insolente olhar científico
certificara a sua morte. É aí onde reside a criatividade inerente às relações
sociais tratando de libertar-se do seu próprio jugo.
“A vida em Cabo Verde não vale
muito”, dizia Babá com olhar triste apoiada na varanda do seu
estabelecimiento de comidas e também pensão, anos depois de regressar a Cabo
Verde desde a diáspora francesa. Diante do processo colonial imposto sobre a
sociedade cabo-verdiana pela Europa a través da escravidão, a fome, as
brutalidades e as repressões de todo tipo, a doença, a obrigação de emigrar, a
miséria… nós reivindicamos isso que tanto tempo atrás Jean Duvignaud explicitou
com conmovedora ternura: uma vida diferente para sempre.
Referências
bibliográficas
AUGÉ, M. (2007) Por una antropología
de la movilidad. Barcelona: Gedisa.
DALAKOGLOU, D. / HARVEY, P. (2012) “Roads and Anthropology: Ethnographic
Perspectives on Space, Time and (Im)Mobility”, em Mobilities, 7 (4): 459-465.
FERENCE, M. (2011) “‘Utanijenga--you will build me’: Moral ambiguity and the stigma
of risky business in Nairobi’s transportation Industry”, em ECAS - 4th European Conference on African
Studies, Uppsala (Panel 155- Uncertainty, Danger and the Productive Life of
Risk on and alongside African Roads [Jennifer Hart & Gabriel Klaeger]).
GLICK SCHILLER, N. / SALAZAR, N. B. (2013) “Regimes of
Mobility Across the Globe”, em Journal of
Ethnic and Migration Studies, 39 (2): 183-200.
HANNAM, K. / SHELLER, M. / URRY, J. (2006) “Mobilities, Immobilities and Moorings”, em Mobilities, 1 (1): 1-22.
HORTA, G. / MALET CALVO, D. (2014) Hiace.
Antropología de las carreteras en la isla de Santiago (Cabo Verde).
Barcelona: Pol·len Edicions.
LEIRIS, M. (2007 [1934]) El África
fantasmal. València: Pre-Textos.
LÉVI-STRAUSS, C. (1969 [1955]) Tristos tròpics. Barcelona: Anagrama.
URRY, J. (2007) Mobilities. Cambridge: Polity Press.
[1] A investigação foi realizada no
marco do projecto Estudio comparado sobre apropiaciones sociales y competencias de uso en centros urbanos de tres ciudades africanas (Referência CSO2009-12470), financiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación español, sob a direcção de M.
Delgado y A. López do Departament d'Antropologia Social da Universitat de
Barcelona.
[2] Para uma análise do conceito de mobilidade,
véja-se Urry (2007); para uma visião panorámica transdisciplinária,
Hannam/Sheller/Urry (2006). À vez, Glick/Salazar (2013) introduziram recentemente –desde o ponto de vista crítico da antropologia– algumas
consideracões e matizes ao paradigma das “novas mobilidades”. Finalmente, para
a antropologia das estradas e a relação com o conceito de mobilidade, véja-se
Dalakoglou/Harvey (2012).
[3] O termo hiace responde a uma perspectiva emic (como conceptualização e distinção
significativa para a sociedade estudada). Com este conceito define-se tanto ao
veículo como ao tipo de transporte que representa.
[4] Véja-se, para uma análise crítica dos
paradoxos implícitos nos processos de regulação económica em África, Roitman
(2004).
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