divendres, 12 de març del 2021

Hiace. Antropologia das estradas na ilha de Santiago (Cabo Verde)


HIACE. ANTROPOLOGIA DAS ESTRADAS
NA ILHA DE SANTIAGO (CABO VERDE)
[REVISTA CABO-VERDIANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS,
2: 333-344, 2015]
Gerard Horta

Em primeiro lugar, vamos sintetizar os conteúdos duma investigação [1] relativa à planificação urbana e à movilidade no transporte colectivo interurbano em Santiago a través dos hiace (Horta/Malet, 2014) e, em segundo lugar, vou propor uma reflexão sobre as implicações da regulação formal, administrativa, do “sistema hiace” por parte do Estado.

I
Durante os meses de outono dos anos 2009, 2010 e 2011 desenvolví, juntamente com o antropólogo Daniel Malet, o trabalho de campo dum estudo sobre os usos e as apropiacões das estradas por parte dos motoristas dos hiace (uma carrinha minivan de transporte colectivo que toma o seu nome do modelo Hiace da empresa Toyota, muito usado em África). Tratava-se de estudar as apropiações espaciais desempenhadas pelos motoristas e também pelos peões, e a sua relação com a planificação pública de determinados espaços urbanos da ilha de Santiago (Cabo Verde) no contexto da mobilidade. O objecto inicial da investigação abrangia os usos, as práticas e as representações vinculadas com o espaço e com a própria viatura, as suas funcionalidades instrumentais e simbólicas, assim como as regulações e as resistências que se produzem perante a planificação institucional do uso desses mesmos espaços urbanos e dos consiguientes modelos de transporte e mobilidade. [2]

Se a atenção centrou-se no tráfico dos hiace [3] é pela sua absoluta relevância para o transporte colectivo interurbano na ilha, que se deve a que os hiace articulam o movimento de pessoas e mercadorias de todo tipo, ligando –sem estar sujeitos a horários nem a paragens fixas– os principais núcleos habitados de Santiago. Neste ponto, consideramos a grande relevância das estradas como fenómeno social e a fraca presença que têm nas etnografias do século XX, por isso traçamos o passo da antropologia peripatética à etnografia das estradas, a considerar que o objecto de observação do etnógrafo e o seu objecto de reflexão como antropólogo é a viagem en si mesma (Augé, 2007: 71). Agora bem, também nesse caso sitúa-se a multiplicidade implícita de abordagens, visto que toda viagem inscreve-se simultaneamente como um deslocamento no espaço, no tempo e, em função dos contextos de partida e de chegada, na jerarquia social (Lévi-Strauss (1969 [1955]: 79).

Desta forma é como foi analizada a literatura antropológica referente às estradas africanas desde a obra de Michel Leiris –pela missão Dakar-Djibuti (Leiris, 2007 [1934]) de 1931 a 1933– até à actualidade. A seguir foi estudado, o desenvolvimento histórico da motorização em África e do transporte e, das estradas em Cabo Verde e Santiago (com a testemunha de diversos informantes –passageiros e motoristas dos hiace–), as mudanças produzidas a partir dos anos oitenta e a chegada dos hiace, a aparição e o crepúsculo de Transcor (empresa pública de transporte colectivo interurbano), as dimensões simbólicas dos hiace (nominação, rotulação, o status do motorista na cultura caboverdiana, a cultura viária dominante) e instrumentais (condições laborais de motoristas e ajudantes, sistemas de propriedade do hiace, organização do trabalho, formalização administrativa e prácticas reais, vínculos entre motoristas e patrões e entre motoristas e passageiros, desenvolvimento do hiace e a sua relação com os processos de urbanização em Praia, Somada, Tarrafal e Pedra Badejo e o papel da cooperação internacional na planificação urbana). Foram entrevistados motoristas, passageiros (também vítimas de desastres), funcionários (polícias, políticos, membros da DGTR –Direcção-Geral dos Transportes Rodoviários–), membros das companhias de seguros, etc. A etnografia inclui umas 200 viagens em hiace, e incide muito especialmente nas múltiplas causas (de todo tipo) da acidentalidade viária em Santiago.

II
Em outono de 2012 escrevemos um voluminoso informe para o Ministerio de Ciencia e Innovación español. O capítulo final intitulava-se “Recomendações”, que é a parte da nossa investigação em que o Ministerio tem interesse: ofrecer aos cabo-verdianos algumas propostas relativas à aquilo que se deve fazer para evitar ao máximo as consequências da acidentalidade viária em Santiago. Tratava-se de propor o tipo de conteúdos que permitissem articular a colonização de aquilo informal, e a normalização por parte dum Estado “em vías de desenvolvimento”.

Sucupira (Praia). 
  
Se quisessemos propor a reformulação de determinados aspectos do universo hiace não à sociedade popular mas sim aos governantes de Cabo Verde –umas propostas em muitos casos nada variam das que exigiríamos aos nossos próprios governantes europeus–, se chegássemos a acreditar que os antropólogos europeus somos “alguém” para aconselhar “alguma coisa” ao povo cabo-verdiano, começaríamos por nos remeter ao abandono estrutural por parte das instituições públicas do cuidado e a protecção das vítimas de desastres. Costuma-se afirmar que a superação do estado actual das coisas neste terreno viria, tal vez, da mão da criação duma estratagema de combate da sinistralidade e dos seus amargos frutos, a promover e a proteger também as iniciativas populares de autoregulação do sector,  como associacões ou sindicatos não formais mas sim empíricamente efectivos na sua labor –um assunto concebido por vários motoristas–. Tal planificação foi projectada sem atender à necessária transformação do modelo de relações económicas e laborais imperantes em Cabo Verde, pensamos que muito provávelmente veria-se condenada a falhar. ¿Quem melhor que a própria sociedade cabo-verdiana conhece melhor que ninguém o tipo de processos que são precisos para pôr fim a esta dramatização estructural do tráfico socioviário, geradora dum corolário sistemáticamente funesto? Como em todas as partes do mundo, o Estado deveria garantir a atenção física e psicológica das vítimas de desastres, a conservação do lugar de trabalho ou a contrapartida duma pensão digna no caso de incapacidade derivada do desastre. Tudo isto, até que se resolvesse favorávelmente o estado de saúde das vítimas. No caso de que o sustento familiar dependa duma vítima mortal, deveriam ser articulados os mecanismos necessários para que o Estado tome conta do grupo familiar nos ámbitos que afectam aos serviços básicos: educação, saúde –inclusive o apoio psicológico–, a morada e a conservação das condições materiais fundamentais.

Poderíamos continuar a dizer que perante a presênça de pelo menos un 10% de hiace clandestinos em circulação, assim como de um número apreciável de veículos propriedade de cargos públicos eleitos, de funcionáios de todo tipo e inclusive de simples trabalhadores públicos, deveria de se fazer um processo de regulação riguroso. Seria desejável que se prohibisse a propriedade dos veículos autorizados para o transporte profissional a cargos públicos eleitos, funcionários e trabalhadores públicos pelo risco de corrupção que comporta (tanto em Cabo Verde como em qualquer outro lugar).

Da mesma forma, deveriam de ser postos fora de circulação os veículos em deficiente estado mecánico e sem cobertura da companhia de seguros, apoiando os motoristas-proprietários que não dispuseram de meios para poderem trocar de carrinha. Paralelamente, poderiam-se multar aqueles que usam as viaturas de forma irregular –a qual coisa faria sair da circulação muitos destes hiace–. No entanto, insistimos: ¿que sentido teria aplicar estas propostas se não se modifica o modelo de relações laborais vigente nos hiace? ¿Até que ponto a simples petição da formalização duma actividade económica como esta iria resolver o nivel da altíssima concorrência por conseguir passageiros num contexto social liderado pelo empobrecimento da maior parte da sociedade e em que o número de passageiros depende em parte das suas possibilidades e necessidades económicas e de trabalho? ¿Quem pode deslocar-se em hiace se não dispõe dum trabalho ao qual apresentar-se nem da capacidade financeira para viajar? Em vez, ¿cómo iria afectar o vínculo social que mantém o fundamento do universo hiace a partir da rede de correntes de relações socioterritoriais na cual qual se inscreve?

Motoristas de yasi de Tarrafal em Sucupira (Praia).

A inestabilidade e a precariedade laboral é uma das causas mais notáveis das práticas de risco dos motoristas do hiace. A introdução da obrigatoriedade de contratar formalmente o motorista com uma série de garantias estabelecidas (dias de descanso semanal, cobertura da segurança social e períodos de férias) asseguraria certa estabilidade. O motorista assalariado não deveria viver com a pressão continua de fazer render a viatura ao máximo, a custo de ser despedido se não for assim. Não é possível guiar um hiace sete días sobre sete, sem férias nem descansos: trata-se de um despropósito em todos os sentidos. Tal vez a reducção do parque de hiace, consubstancial à regulação geralizada das viaturas, asseguraria o rendimiento do pequeno negócio do hiace sem que os motoristas tivessem que recorrer a práticas de risco.

Resultaria imperativo articular a autoorganização dos motoristas e os passageiros como base da administração da sua própria existência além do Estado, dos sindicatos e das associaciões corporativas. Os motoristas poderiam canalizar deste modo a defesa dos seus direitos como trabalhadores assalariados, e assegurar um âmbito laboral seguro, justo e dignamente remunerado. Os proprietários poderiam exercer pressão sobre o Estado com a finalidade de proporcionar os mecanismos necessários para a organização do sector e a manutenção apropriada das estradas –pavimentação, sinalização, iluminação, etc. –. Os passageiros, então, poderíam organizar as suas próprias necessidades juntamente com os hiacistas, e fazer-se valer perante a Administração pública.

Porém, desta forma não se garante nem a qualidade das estradas construídas nem as promessas de conservação que as empresas estrangeiras contratadas deveriam adquirir. Além disso, o mantimento não se pode limitar à limpeza das márgens das estradas, sem mais.

Outro extremo constatado tem orígem na falta de presença policial no conjunto da ilha, devido a que quase toda ela concentra-se em Praia e redores, possibilitando de este modo a impunidade em matéria de tráfico no resto de povoações, sendo praticamente impossível cruzar-se com um veículo policial na estrada –desta forma  aflora novamente a discussão referente à necessidade da presença policial ou não em termos de controlo e fiscalização do tráfico–. É  realmente em Praia e redores –até à zona de Somada– onde se concentram a maior parte de acidentes pela grande densidade de circulação, por isso a ampliação da rede policial de tráfico para o interior da ilha poderia diminuir –mediante uma correcta fiscalização sobre o terreno– as prácticas de risco fora da capital –de entrada, pela sobrecarga de passagem ou de mercadorias, e pelo consumo de alcohol e de substancias psicoactivas–. À vez, asseguraria o controlo do cumprimento das condiciões de contratação do motorista, comprovação da propriedade, inspecção dos requisitos técnicos do veículo, etc. Uma vez mais, o debate sobre o modelo da cultura viária à qual acudir e a atribuição de maior ou menor relevância às dimensões da sanção efectiva se diluem-se num meio social precarizado como este: negamos-nos a aceitar que as transformações culturais e normativas possam realizar-se –em órdem a uma efectividade empírica– sem ser acompanhado dum projecto colectivizador baseado no desenvolvimento do bem estar material e da centralidade política da igualdade e justiça social.

O processo de modernização –asfaltado e sinalização– das estradas principais que se produziu em Cabo Verde desde o ano 2009 até agora tem sido veloz e intenso. Neste terreno deveria de haver um diálogo com os vizinhos e os peões que protagonizam um uso habitual das vias de comunicação para situar as suas necessidades e as pautas culturais que guiam as suas conductas. É de aí que vem a importância do acondicionamiento e a protecção das beiras das estradas, por causa do intenso uso que habitualmente realizam os vizinhos e as crianças das escolas e do risco que disso se desprende. ¿Como se pode ter a certeza, dada la extensão dum asfaltado correcto o qual da lugar a maiores velocidades, que os conductores não entrem nas povoações a alta velocidade? Para atingir mais respeito para com os usos do espaço por parte dos viandantes no interior e no exterior dos núcleos urbanos, seria necessário reformular os fundamentos de uma nova cultura viária dirigida a atender o tipo de apropriações históricas que os viandantes caboverdianos levam a cabo das rúas e das estradas. Tais motivos levariam a assumir: un maior cumprimento da regulação de conducção; e também a adquirir como principio básico da conducção viária a minimalização das situações de risco. ¿Deve-se incrementar e racionalizar o uso de quebramolas para obrigar ao veículo a manter baixas velocidades no interior das povoações? Sem dúvida, mas, ¿não é verdade que a modificação dos hábitos de condução dominantes responde a um determinado tipo de cultura viária ligada a condicionantes laborais, culturais, políticos, de prestigio social, etc.? É preciso aumentar a sinalização na estrada, e –a falta de iluminação artificial nocturna– a sinalização cromática ou luminosa das quebramolas –não debemos esquecer-nos da ausência geralizada de semáforos–.

Sucupira (Praia). 

Na actualidade não existe uma fiscalização rigurosa à volta de: 1) o número de horas de trabalho dos motoristas e os períodos de descanso diário, semanal e ferial; 2) os limites da sobrecarga do veículo, tanto de passageiros como de mercadorias; 3) a prohibição de viajar com as janelas fechadas enquanto se ouve música: nesta situação é impossível ouvir as sinais sonoras que proceden do exterior da viatura –as secuelas potenciais que provoca a aparição do novo modelo hiace, o “Costa Camelo”, são muito preocupantes, posto que ao estarem equipados com ar condicionado numa ilha onde faz calor durante todo o ano, as janelas estão permanentemente fechadas, portanto com dificuldade para poder ouvir as sinalizações sonoras do exterior: as nefastas consequências desta situação pelo que se refere ao risco para a seguridade viária são evidentes–; 4) a obrigação de manter o equipamento do veículo com cintos de segurança para todos os viajeiros, e, em consequência, a obrigação geralizada de que todo passageiro viaje con o cinto apertado; e 5) a prohibição de ingerir substancias estupefacientes: grogu, padjinha ou otras, pelas impactantes e devastadoras derivações sobre a conducção.

A falta de vontade política governamental, motivada em principio pela já referida falta estrutural de meios materiais para implementa-la, impediram até agora uma regulação pública do transporte colectivo interurbano em hiace em todas as suas dimensões. [4] A pesar de não poder estabelecer com certeza a qué é que levaria isso em Cabo Verde, no relativo aos usos do espaço por parte dos viandantes pode-se assegurar que em muitos aspectos tal regulação seria redundar numa maior inferiorização dos peões perante as viaturas motorizadas, de modo que  encontrariamo-nos na disjuntiva que se produz entre o processo urbanizador moderno e as apropriações tradicionais, populares, de rúas e estradas. A regulação do hiace deveria redundar na melhoria das condições de trabalho e de transporte das pessoas afectadas, e numa previsível redução da sinistralidade viária nas áreas urbanas e interurbanas.  

Ainda que, ¿que maior factor de redução da sinistralidade que proceder à creação dum auténtico serviço público e de qualidade de transporte interurbano com autocarros ou minibuses? Um serviço que ofrecesse respostas às necessidades horárias da sociedade cabo-verdiana, com percursos directos e com percursos indirectos que atendessem à multiplicidade de necessidades das pessoas dos núcleos populacionais dispersos e que precisa de meios de mobilidade consistentes. A todo o custo, evidentemente, de deixar de parar-se tras as curvas, de deixar de dar marcha atrás no meio da estrada, de deixar de mudar tres veces de motorista num mesmo percurso, tal vez a custo de sepultar os hiace para sempre. Por trás da privatização e da destruição do serviço de transporte interurbano sob o governo do MpD na década dos noventa afloram os interesses económicos dum sector social de proprietários privilegiados que se propaga da própria Administração até aos cargos públicos, os quais incumben nos afastados enclaves da diáspora cabo-verdiana na Europa e nos EUA: E aos que os governos posteriores do PAICV não acharam solução.

Sucupira (Praia). 

¿E agora que? Em base ao nosso trabalho de campo e à reflexão e a análise à qual nos levou esta investigação, ¿devemos propugnar a continuidade de uma actividade informal que tem lugar num marco de exploração e corrupção política e funcionarial, e que gera uma sinistralidade soferta pela gente humilde de Santiago? ¿Ou, ao contrário, defenderemos a imposição plena da formalidade estatal em todos os ámbitos do universo hiace? A principal consequência disto consistiria em anular uma capacidade de autoorganização popular que depende só dela mesma na hora de focalizar para uns ou outros rumos o desenvolvimento deste fenómeno social.

A deplorável complexidade desta simplificadora dicotomia reside em que, paralelamente à imposição de modelos estatais formalizadores da vida social, em África aparece sempre esa proximidade das políticas públicas ultraliberais, desreguladoras, constituídas em constante ameaça de assédio perpetuo para a existência duma socialidade informal popular que parte mais do vínculo social que da mercantilização económica das relações. Serão os próprios feridos em desastres, serão os companheiros de motoristas represaliados como Marcelino, serão os ajudantes e os motoristas assalariados aqueles que algum dia levantarão a voz colectivamente… ou não.

Justificar a intervenção do Estado com o objetivo de materializar determinadas mudanças normativas e relacionais não deixa de ser inquietante, sobretudo conhecendo o perfil que iriam tomar tais regulações e as corruptelas inaugurais: a destruição, a miserabilização e a anomização geralizada de África, o abatimento da solidariedade –que por vezes surge da exploração e da miséria– sob a universalização económica, tecnológica e cultural do capitalismo. Trata-se de uma discussão que articula as tensões entre –por um lado–,as sanções jurídicas e os modelos preventivos estabelecidos para paliar os aspectos mais desagradáveis da motorização consubstancial à intervenção urbanizadora; frente a –por outro lado– um contexto cultural determinado e as suas prácticas empíricas reais, marcadas sempre por campos de identificação relacional entre individuos e grupos, e por processos de desigualdade e diferenciação inerentes a uma estrutura social profundamente jerarquizada. Perante isto, ¿que aspecto deve ser regulado e por quem? ¿Trate-se simplesmente de aumentar os dispositivos de controlo e fiscalização policiais nas rúas e estradas? ¿Da educação viária impartida aos motoristas e peões? ¿Do estado das estradas? ¿Do uso de semáforos? Em conclusão, ¿por qué referir-nos a um problema de regulação, controlo e educação quando estas esferas de actuação são massivamente desatendidas –e até transgredidas– pelas mesmas autoridades que as preconizam? Uma visão compreensiva do problema da sinistralidade não pode deixar de lado as relações que se estabelecem entre leis, regulações e formações viárias “universais” perante ao conjunto de posições e disposições socioculturais e políticoeconómicas enfrentadas no seio duma sociedade, e expressadas a través de prácticas e processos relacionais complexos, multicausais e contraditórios.

Aquilo que denominamos “sistema hiace” (solidariedade –maior ou menor– entre motoristas, autogestão colectiva de tempos e paragens, flexibilidade e representação em todos os aspectos) erige-se, mediante os elementos de socialização e cooperação que contém e que gera, como um transporte moldeado pelas necessidades inmediatas daqueles que o ocupam para autoregula-la –ou daqueles que acudem para ocupá-lo–. Nas antípodas da noção de “segurança” occidental, o hiace encarna um serviço creativo e flexível… que da marcha atrás no meio da estrada, que espera a alguem que desce da montanha, que se para num riacho, que abre a porta para que alguém saia a vomitar, urinar ou comprar bananas, que se esconde da polícia ou que se despenha tristemente. Trata-se dum veículo que vive para o social. ¿Condução temerária? O hiace, como planteia Ference (2011) para os matatu keniatas, adapta-se in situ às exigências do corpo social que ocupa a viatura, o motorista poucas veces é mais do que a suma das pressões e decisões do seu entorno e da paisagem –a mudar em cada paragem–. Isso é o que encontramos nos nossos amados hiace.

Sucupira (Praia). 

Tal vez ese “afecto” que deveria ser exigido à antropologia (entre outras presenças occidentalizadoras em África) consista no complexo exercício de descobrir y reforçar, no interior das relações de desigualdade, as estructuras cooperativas e participadas que se encontram já lalém, desde sempre, antes de que o insolente olhar científico certificara a sua morte. É aí onde reside a criatividade inerente às relações sociais tratando de libertar-se do seu próprio jugo.

A vida em Cabo Verde não vale muito”, dizia Babá com olhar triste apoiada na varanda do seu estabelecimiento de comidas e também pensão, anos depois de regressar a Cabo Verde desde a diáspora francesa. Diante do processo colonial imposto sobre a sociedade cabo-verdiana pela Europa a través da escravidão, a fome, as brutalidades e as repressões de todo tipo, a doença, a obrigação de emigrar, a miséria… nós reivindicamos isso que tanto tempo atrás Jean Duvignaud explicitou com conmovedora ternura: uma vida diferente para sempre.

Referências bibliográficas
AUGÉ, M. (2007) Por una antropología de la movilidad. Barcelona: Gedisa.
DALAKOGLOU, D. / HARVEY, P. (2012) “Roads and Anthropology: Ethnographic Perspectives on Space, Time and (Im)Mobility”, em Mobilities, 7 (4): 459-465.
FERENCE, M. (2011) “‘Utanijenga--you will build me’: Moral ambiguity and the stigma of risky business in Nairobi’s transportation Industry”, em ECAS - 4th European Conference on African Studies, Uppsala (Panel 155- Uncertainty, Danger and the Productive Life of Risk on and alongside African Roads [Jennifer Hart & Gabriel Klaeger]).
GLICK SCHILLER, N. / SALAZAR, N. B. (2013) “Regimes of Mobility Across the Globe”, em Journal of Ethnic and Migration Studies, 39 (2): 183-200.
HANNAM, K. / SHELLER, M. / URRY, J. (2006) “Mobilities, Immobilities and Moorings”, em Mobilities, 1 (1): 1-22.
HORTA, G. / MALET CALVO, D. (2014) Hiace. Antropología de las carreteras en la isla de Santiago (Cabo Verde). Barcelona: Pol·len Edicions.
LEIRIS, M. (2007 [1934]) El África fantasmal. València: Pre-Textos.
LÉVI-STRAUSS, C. (1969 [1955]) Tristos tròpics. Barcelona: Anagrama.
URRY, J. (2007) Mobilities. Cambridge: Polity Press.


[1] A investigação foi realizada no marco do projecto Estudio comparado sobre apropiaciones sociales y competencias de uso en centros urbanos de tres ciudades africanas (Referência CSO2009-12470), financiado pelo Ministerio de Ciencia e Innovación español, sob a direcção de M. Delgado y A. López do Departament d'Antropologia Social da Universitat de Barcelona.

[2] Para uma análise do conceito de mobilidade, véja-se Urry (2007); para uma visião panorámica transdisciplinária, Hannam/Sheller/Urry (2006). À vez, Glick/Salazar (2013) introduziram recentemente –desde o ponto de vista crítico da antropologia– algumas consideracões e matizes ao paradigma das “novas mobilidades”. Finalmente, para a antropologia das estradas e a relação com o conceito de mobilidade, véja-se Dalakoglou/Harvey (2012).

[3] O termo hiace responde a uma perspectiva emic (como conceptualização e distinção significativa para a sociedade estudada). Com este conceito define-se tanto ao veículo como ao tipo de transporte que representa.

[4] Véja-se, para uma análise crítica dos paradoxos implícitos nos processos de regulação económica em África, Roitman (2004).